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Libertinagem & Estrela da Manhã – Manuel Bandeira

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Certas lembranças são assim mesmo, meio inexplicáveis, acompanham o dia-a-dia da gente sempre. Quando tomei contacto pela primeira vez com a poesia de Manuel Bandeira, sonhei, quase levitei. A professora do colégio lia, com voz macia, “Vou-me embora pra Pasárgada”. Olhava, compenetrada, para o fundo da sala e caprichava: “Vou-me embora pra Pasárgada / Lá sou amigo do rei / la tenho a mulher que eu quero / Na cama que escolherei / Vou-me embora pra Pasárgada.”

Explicações técnicas da professora acompanhavam a declamação: “este livro de poemas Libertinagem, de Manuel Bandeira, de 1930, poesia com evidente abandono da versificação tradicional, poesia com ritmo livre, poemas caracterizados pela rejeição da estrofe de versos enquadrados, cheios de construções sintáticas propositalmente tortuosas, ritmo modulado ao jeito anguloso do físico do poeta, como brincou Mário de Andrade, com movimentos bruscos e inesperados para o leitor, com sinestesias e assonâncias espalhadas sem ordem. Libertinagem ratificou e robusteceu a modernidade poética brasileira.”

No recreio daquela manhã colegial falou-se de poesia, de sonhos, de paixões, de evasão. E da linguagem coloquial-irônica do poemas de Libertinagem, que libertava, sim, ao trazer a poesia para muito perto do cotidiano da gente. Mas a libertação do livro para muito perto do cotidiano da gente. Mas a libertação no livro de Manuel Bandeira, na verdade, não se dá com o movimento de partida para um mundo só de prazeres e de alegria, deixando definitivamente para trás o mundo real. Dá-se, antes pela maneira de ludibriar a inevitável e inexorável tragicidade que, mais cedo ou mais tarde, virá bater à nossa porta. Não se trata de evasão alienante, trata-se, isso sim, de lidar com o trágico deste mundo, ficando por aqui mesmo. Mais do que sonho, é luta. Às vezes as armas são a zombaria e o ridículo, maneira pela qual o autor enfrenta a sua tragédia pessoal, como se pode ler, por exemplo, no poema “Pneumotórax”. A privação do desejo e o desengano afetivo – no poema “Oração no Saco de Mangaratiba”, de Libertinagem, e no “Canção das duas Índias”, do livro Estrela da Manhã, chega-se à terra por acaso, por engano, não por vontade própria – são recorrentes em Bandeira, sempre tratados, porém, com ironia.

Os poemas de Libertinagem foram escritos entre 1924 e 1930 e contribuíram decisivamente para consolidar o modernismo brasileiro. O acento nacional irrompe, às escâncaras, por exemplos, em “Evocação do Recife”, onde a variante brasileira da língua portuguesa é regiamente alcançada ao mais subido grau. A descoberto fica também a ideologia poética de Bandeira no poema “Poética” – “Estou farto do lirismo comedido”, quase uma rebelião contra o versejar tradicional. Libertinagem é todo assim, maravilha à flor da pele. Poesia que rompe, que ajuda a fixar a nacionalidade brasileira, que consolida as letras e as coisas nacionais, que a gente sente e pode alcançar com as mãos. A natureza irônica de Bandeira, como ele próprio afirma, represada pela formação clássica, parnasiana e simbolista, expandiu-se livremente a partir de Libertinagem. Bandeira leu, e reescreveu com humor, Bilac, Castro Alves Luís Delfino, Eugênio de Castro, Oscar Wilde, Eliot, Dante, Daudelaire, Spencer, Shakespeare entre outros. A exaltação do cotidiano, como no “Poema tirado desse cotidiano o seu padrão imagístico, desenvolve as sua própria dicção, compõe o seu espaço poético, desnuda o mistério, estampa a verdade simbólica contida na banalidade dos fatos corriqueiros, recorre ao burlesco, à ironia, ao humor – é só ler o delicioso “Irene no céu” -, põe lado a lado o profano e o sacro, o erotismo e o amor louvação, a galhofa e a austeridade, e ingressa, faceiro, no Panteão dos grandes nomes da literatura brasileira.

O livro de poemas Estrela da manhã, de 1936, dá continuidade à linha de Libertinagem. O poeta acrescenta temas do folclore negro e abraça temas sociais. O “São João Batista do Modernismo”, como ficou conhecido pelos expoentes da Semana de Arte Moderna, Reforça no livro a renovação estética. Um dos poemas mais conhecidos e paradigmáticos da obra é “Balada das três mulheres do sabonete Araxá”, que aliás, a professora do colégio também leu com voz embargada. Mas não é o único. O poema “Tragédia brasileira” traduz à saciedade o cotidiano banal e mágico enfrentado através do burlesco – a ironia e o humor trágico estão em “Misael tirou Maria Elvira da vida, instalou-a num sobrado no Estácio (…) matou-a com seis tiros, e a polícia foi encontrá-la caída decúbito dorsal, vestida de organdi azul”. No poema “Estrela da manhã”, o Bandeira artesão do verso surge com genialidade. A tese social se espraia na “Chanson des petits esclaves”; o folclore negro em “Boca de forno” e “D.Janaína”. O estranhamento formal que choca o conservadorismo continua em “Rondó dos cavalinhos” (o segundo dístico da quadra, aparentemente, nada tem a ver com o primeiro). “Momento num café”, a propósito do enterro que passava, lembra que a vida é traição – um dos homens “saudava a matéria que passava / Liberta para sempre da alma extinta”. É liberdade na sua plenitude. O poeta, tal equilibrista desconcentrado, anda no limite da vida, locus  do embate entre a banalidade da existência e a morte absoluta , conflito que a sua poesia equaciona com mestria. Mas, como já assinalado é “Balada da três mulheres do sabonete Araxá” que encerra com nitidez grande parte da filosofia e da técnica da poesia bandeiriana. Segundo relata o autor, foi após ver um cartaz de sabonete que ele se pôs a compor o poema. “O trabalho de composição está em eu ter adequado às circunstâncias de minha vida fragmentos de poetas queridos e decorados em minha adolescência (…)”, escreveu nos depoimentos que estão no seu Itinerário de Pasárgada, de 1954. Bandeira foi grande admirador de Luís Delfino, autor do As três irmãs. As três mulheres de Bandeira parodiam as três irmãs de Luís Delfino. Só que sem o amor paternal, o amor fraternal e o amor redução. E sem a paixão. O “Se a segunda casasse, eu mesmo iria à Igreja, levá-la pela mão” de Delfino se transforma em “Se a incorpora, ainda, versos de Rimbaud – “a minha vida outrora teria sido um festim!”; repete a pergunta de Tetrarca a Salomé de Oscar Wilde – “não quero nada disso, tetrarca. Eu só quero as três mulheres do sabonete Araxá”. Faz o mesmo com Ricardo II, de Shakespeare – “O meu reino pelas três mulheres do sabonete Araxá”, Vale-se, sempre com a mesma ironia, de Bilac, de Castro Alves e de letras de sambas de carnaval da época. A colagem e o entrecruzamento dos textos seguem a experiência cubista e surrealista. O autor sempre afirmou que era comum compor meio fora de si – febre, cansaço, sonho. O surrealismo de André Breton potencializava o humor algo triste do Bandeira do “O cacto” – “Era índia foi a minha primeira namorada” do “Porquinho-da-índia”, ambos em Libertinagem. O Bandeira dos sonhos e o bandeira afinado compuseram o magistral “Canção das duas Índias”, em Estrela da Manhã, poema construído oniricamente, considerado por muitos um dos mais importantes poemas da poesia brasileira e o “Noturno da Parada Amorim”, em Libertinagem, “O violoncelista estava a meio do Concerto de Schumann / Subitamente o coronel ficou transportado e começou a gritar: – Je vois des anges! Je vois des anges!“. A plasticidade surrealista amalgama os sentidos, encobre com manto artístico voz e luz – como em “A Virgem Maria”, de Libertinagem – “Mas de lá de dentro do fundo da treva do chão da cova / Eu ouvia a vozinha da Virgem Maria / Dizer que fazia sol lá fora (…)” e faz da poesia de Bandeira um dos momentos mais altos e nobres da nossa história literária. Bandeira sabe que, assim como a arte, a vida é uma construção. melhor erguê-la num desenho poético.

Godofredo de Oliveira Neto

 

https://www.youtube.com/watch?v=n9-XQap1-N0

 

Manuel Bandeira

Manuel Bandeira (1886-1968) foi um poeta brasileiro. “Vou-me Embora pra Pasárgada” é um dos seus mais famosos poemas. Foi também professor de Literatura, crítico literário e crítico de arte. Os temas mais comuns de sua obra são: a paixão pela vida, a morte, o amor e o erotismo, a solidão, o cotidiano e a infância.

Manuel Bandeira (1881-1968) nasceu na cidade do Recife, Pernambuco, no dia 19 de abril de 1886. Filho do engenheiro Manuel Carneiro de Souza Bandeira e de Francelina Ribeiro, abastada família de proprietários rurais, advogados e políticos. Seu avô materno Antônio José da Costa Ribeiro, foi citado no poema “Evocação do Recife”. A casa onde morava, localizada na Rua da União, no centro do Recife é citada como “a casa do meu avô”.

Manuel Bandeira viajou, junto com sua família, para o Rio de Janeiro, em 1890. Ingressou no Colégio Pedro II, onde foi amigo de Souza da Silveira, um estudioso da língua portuguesa. Em 1892 voltou para o Recife. É nessa época que escreve seus primeiros versos, não pensava ainda em ser poeta. Em 1903 vai para São Paulo e ingressa na Escola Politécnica, no curso de Arquitetura, mas no fim do ano letivo teve que abandonar os estudos, por ter contraído tuberculose. Voltou para o Rio de Janeiro onde tentou tratamento em estâncias climáticas em Teresópolis e Petrópolis.

Em 1913, Manuel Bandeira vai para o sanatório de Cladavel, na Suíça, onde convive com o poeta francês Paul Éluard, que coloca Manuel Bandeira a par das inovações artísticas que vinham ocorrendo na Europa. Discutem sobre a possibilidade do verso livre na poesia. Esse aspecto técnico veio fazer parte da poesia de Bandeira, que foi considerado o mestre do verso livre no Brasil.

Com o início da Primeira Guerra, em 1914, Bandeira volta a morar no Rio de janeiro. Em 1916, morre sua mãe. Em 1917, publica seu primeiro livro “A Cinza das Horas”, de nítida influencia Parnasiana e Simbolista. Em 1918, morre sua irmã, que tinha sido sua enfermeira durante muito tempo. Em 1919, publica “Carnaval”, que representou sua entrada no movimento modernista. No ano seguinte morre seu pai.

Em 1921, conhece Mário de Andrade e através deste, colabora com a revista modernista Klaxon, com o poema “Bonheur Lyrique”. Morando no Rio de Janeiro, estava distante do grupo paulista que centralizava os ataques à cultura oficial e propunha mudanças. Para a Semana de Arte Moderna de 1922, enviou o poema “Os Sapos”, que lido por Ronald de Carvalho, tumultuou o Teatro Municipal. Nesse mesmo ano morre seu irmão.

Manuel Bandeira vai cada vez mais se engajando no ideário modernista. Em 1924, publica “Ritmo Dissoluto”. A partir de 1925, escreve crônicas para jornais onde faz críticas de cinema e música. Em 1930, publica “Libertinagem”, obra de plena maturidade modernista. No poema “Evocação do Recife” que integra a obra, tematiza a infância, faz uma descrição da cidade do Recife no fim do século XIX. Incorpora também vários temas ligados à cultura popular e ao folclore.

Em 1938, é nomeado professor de Literatura do Colégio Pedro II. Em 1940 foi eleito para Academia Brasileira de Letras, ocupando a cadeira de nº24. A partir de 1943 é nomeado professor de Literatura Hispano-Americana da Faculdade Nacional de Filosofia. Em 1957, viaja durante quatro meses pela Europa. Ao completar oitenta anos, em 1966, publica “Estrela da Vida Inteira”.

Manuel Carneiro de Souza Bandeira Filho faleceu no Rio de Janeiro, no dia 13 de outubro de 1968.

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