As muitas veredas de peregrinação intelectual e artística do judeu de origem francesa George Steiner – a crítica literária e a filosofia, o ensaio nômade entre a prosa e a poesia, a fuligem humana do Holocausto como a impossibilidade e a suma necessidade da memória – parecem encarnar o belo título de uma de suas obras: nostalgia do absoluto. Alado por ímpeto verdadeiramente renascentista, Steiner não aceita a divisão do trabalho entre criação e intelecção, narrativa e conceito. Para ele, o “era uma vez” é uma das crisálidas – quiçá o ninho por excelência – do conhecimento e do sentido.
É assim que, em Aqueles que Queimam Livros (Editora Âyiné, tradução de Pedro Fonseca), Steiner nos narra a metamorfose que a descoberta do livro lhe provocou – algo como o deslumbramento ao ver o gênio se libertar da masmorra de sua lâmpada: “Um livro pode esperar séculos para despertar um eco vivificante. Pode estar à venda pela metade do preço em uma estação do metrô, como foi o caso do [poeta e ensaísta romeno Paul] Celan que descobri por acaso e abri. A partir daquela circunstância fortuita, minha vida se transformou, e eu tentei aprender ‘uma língua ao norte do futuro’”.
Hipnotizado pelo abracadabra – a bem dizer, aguilhoado pelo cordão umbilical que (con)funde realidade e ficção –, Steiner nos pergunta: “Quem entre nós possui uma fração que seja da vitalidade, da ‘presença real’, que emana do Ulisses de Homero? [O poeta inglês Percy] Shelley professa que nenhum homem capaz de amar a Antígona de Sófocles sentirá uma paixão parecida por uma mulher de carne e osso”.
Diante da realidade ficcional impulsionada (e dignificada) pelo tapete voador da imaginação, nós mal escutamos um grito lancinante que nos surpreende na rua. “O que é esse grito”, prossegue Steiner, “comparado ao grito de Lear contra Cordélia [em Rei Lear, de Shakespeare]? (…) Em um mundo asséptico e condicionado, milhões de seres humanos morrem todos os dias diante das telas de televisão . Entretanto, o sábio e verdadeiro leitor e o escritor estão saturados da terrível intensidade da ficção, eles são formados para responder ao mais alto grau de identificação com o fictício. Essa formação, no limite, pode mutilá-los e separá-los daquilo que Freud chamava de ‘princípio da realidade’”. Afinal, por que deveríamos retornar, desiludidos, ao deserto do real, se, ao sussurrarmos o código secreto – abre-te, sésamo! –, a ficção nos oferece odaliscas, viagens intergalácticas e reencontros com os entes queridos que já se foram? Assim, um espectro ronda a fantasia, o espectro da loucura.
É impressionante, ademais, a plasticidade (a ambiguidade) que a ficção apresenta (e representa) em face dos poderosos que, historicamente, a quiseram silenciar. É assim que Steiner, secundado pelo escritor argentino Jorge Luis Borges, sentencia que “a censura é a mãe da metáfora”. Por sinal, se George Steiner discorresse sobre os atuais paladinos da moralidade nos poderes Judiciário, Legislativo e Executivo brasileiros – paladinos que movimentam duvidosas contas bancárias no exterior, presenteiam potenciais delatores com malas de dinheiro e incrementam seus salários astronômicos com benefícios que inexistem para os mortais das iniciativas pública e privada –, o autor bem poderia sentenciar, secundado por Machado de Assis, que a moralidade é a mãe da ironia.
O título da obra de Steiner faz referência a uma colocação tragicamente premonitória do poeta judeu de origem alemã Heinrich Heine (1797-1856): “Onde livros são queimados, seres humanos também estão destinados a arder em chamas”. Em dezembro de 2017, quando estive no Memorial do Holocausto (Yad Vashem), em Jerusalém, li o vaticínio de Heine entremeado por fotos de hordas nazistas atirando milhares de livros às chamas em meados de 1933, na Alemanha. Poucos anos depois, a política de extermínio implementada pela Solução Final da Questão Judaica substituiria a fuligem dos livros por fuligem humana.
Ora, já não se leem mais livros como quando dos anos de aprendizado de George Steiner. O utilitarismo coisificado de nossa sociedade exila as humanidades; o ataque a disciplinas fundamentais como Filosofia e Sociologia por duvidosas reformas educacionais torna ainda mais exígua a possibilidade de pensamento e imaginário críticos; o silêncio e a concentração requeridos pela leitura são solapados tanto pelo culto impaciente ao imediatismo das redes sociais e seu batalhão de imagens quanto pela enorme dificuldade de se organizar o tempo livre em face do recrudescimento da dinâmica de trabalho (e desemprego). Aqueles que queimavam livros, então, já não precisam fazê-lo. Aqueles que queimavam livros agora incineram a própria imaginação.
Texto escrito por Flávio Ricardo Vassoler. Doutor em letras pela USP, com pós-doutorado em literatura russa na Northwestern University
Post extraído do Caderno Aliás, do jornal Estadão