Com treze anos de idade, eu tinha todos os ossos do meu corpo intactos, nunca havia passado pela agonia de quebrar um osso, mas como dizem: para tudo se tem uma primeira vez.
Faixa vermelha em Taekwondo, em busca da famigerada faixa preta, eu treinava incríveis duas vezes por semana – vocês acham que isso é o suficiente para quem quer se tornar faixa preta? Não, mas eu era inocente na época – e em uma linda tarde de terça-feira, ou maldita tarde de terça-feira, eu estava treinando chutes com meu mestre. A gente chamava ele de Mestre Sid, o nome verdadeiro ninguém sabia, era um senhor de sessenta e quatro anos, careca e com um bigode branco que beirava o peito, que veio da Tailândia e abriu uma academia de Taekwondo, em Frederico Westphalen. Apesar de ser um velho – com todo o respeito –, ele tinha uma força admirável, e uma flexibilidade digna de um mestre. O problema é que, como eu disse, ele era um velho, e acho que ele tinha algum tipo de problema de visão.
Logo, no primeiro treino de chute, o Mestre Sid pediu para eu segurar uma raquete de isopor, para que ele fizesse uma demonstração de chutes para a turma – a nossa turma era de 8 alunos, caso alguém se interesse em saber – e eu topei, mal sabia que ia me arrepender de ter saído da cama nesse dia.
Os primeiros quinze chutes foram executados com perfeição pelo Mestre Sid, mas como eu já disse, ele era um velho. No décimo sexto chute, ele usou sua força admirável e sua flexibilidade digna de um mestre para errar a raquete e acertar o maldito chute no meu dedo indicador, no silencio deprimente daquela sala – era exigido que todos fizessem extremo silêncio durante as demonstrações do mestre – a única coisa que deu para se ouvir foi o estalo do meu dedo quebrando no meio. Puta merda, eu nunca senti uma dor tão grande, eu acho que nem um chute no escroto de um menino deve doer tanto – e o menino que discordar nunca quebrou um dedo. Eu não conseguia nem gritar de dor, porque a dor era tanta que minha voz não saía, os sete alunos que estavam na sala não mexeram sequer um dedo para me ajudar – e os dedos deles não estavam quebrados – e o maldito velho teve a audácia de me perguntar se eu havia me machucado. Se eu conseguisse falar, teria mandado ele para o inferno, em três idiomas diferentes, inclusive em tailandês.
Como um camaleão, meu dedo mudou de cor em segundos, de cor de pele para um roxo violeta que reluzia com a luz – talvez eu esteja exagerando um pouco – e eu em um ato maduro e digno de uma pré-adolescente, comecei a chorar.
Minha voz saiu, mas não para falar, para berrar de dor e lavar meu rosto com lágrimas. Só assim para meus colegas quebrarem a inércia e irem me ajudar. O maldito velho tailandês também mexeu aquela bunda enrugada e me prestou socorro. Fui levada ao hospital por ele mesmo, e chegando lá recebi uma notícia que sessou meu choro e me fez abrir um sorriso no rosto; o médico disse que não era uma fratura, apenas uma luxação, e o raio-x iria confirmar isso. Fui levada direto para a sala de exames para realizar o x-ray – raio-x em inglês para os leigos – e fui atendida imediatamente, pois não havia nenhum outro azarado com um osso quebrado naquele prédio.
Minutos depois do exame, surge o médico – médico, não doutor, pois doutor é quem faz doutorado – com o raio-x em mãos e um sorriso no rosto, e me dá a notícia:
– Como eu havia dito, existiam chances de não haver fratura, apenas uma luxação. O raio-x confirmou, eu estava errado, você quebrou o dedo.
A raiva que eu estava sentindo do velho que quebrou meu dedo não chegava aos pés da que eu senti desse belzebu de jaleco branco. Novamente meus treze anos se transformaram em dois e eu voltei a chorar igual um bebezinho.
Ele mesmo teve o trabalho de colocar meu osso no lugar – momento no qual eu fiz todos os enfermos do hospital escutarem meus berros – e engessar o mesmo.
Eu fiquei malditos trinta dias com o meu dedo engessado, e passei pela pior aflição da minha vida; nesses trinta dias eu não consegui pegar minha irmãzinha de dois aninhos no colo, ele engessou junto com o dedo minha mão inteira, eu não conseguia mexer nem o pulso, e ainda sentia dor.
Nisso a fratura já não me importava mais, a única coisa que me abalava era ver minha irmãzinha me pedindo colo eu não podendo atendê-la. Pode parecer bobagem, mas só quem tem um irmão ou irmã – e ama ele – consegue entender o que estou relatando.
Esses trinta dias me fizeram refletir e agradecer a Deus – ou Alá, caso o Islamismo esteja certo – por eu ter todos os dedos da mão, por eu ter minha mão, e passar só trinta dias com ela imobilizada, pois eu não suportaria mais tempo sem segurar o amor da minha vida – que é minha irmã – no colo. Foi nessa hora que eu percebi que a maior dor da minha vida não foi a da fratura, e sim a de não poder segurar minha irmã no colo.
Passados trinta dias, eu tirei o gesso, tudo voltou ao normal, eu fiquei um dia inteiro com a Maria Valentina no colo – esse é o nome da minha irmãzinha para os interessados – e agradecia todas as noites por ter minhas mãos em perfeito estado. Depois de seis noites, eu já esquecia de agradecer, mas o que vale é a intenção.
Depois disso, eu voltei a treinar, nunca mais quebrei nenhum osso do corpo. E hoje, com quinze anos, eu ainda não conquistei a faixa preta. Mas juro, que se um dia tiver oportunidade, vou quebrar a coluna daquele velho com um chute – sem guardar rancor.