Por entre os dezessete contos deste livro de Marcelino Freire correm alguns elementos que merecem reflexão por parte do leitor e que se referem à própria concepção do gênero. Sem querer e sem poder esgotá-los no espaço de um prefácio, a que o decoro obriga a ser curto, creio que não será descabido lembrar alguns, a começar pela oralidade, este veio ancestral da narrativa, que marca a maior parte dos contos agora reunidos. Não é, entretanto, uma oralidade que vincule facilmente os contos de Marcelino Freire à tradição do que se chama de literatura oral e que, sobretudo no Brasil, encontra suas raízes nas sociedades de extração rural, como é aquela de boa parte das obras ficcionais resultantes da literatura regionalista e que encontrou o seu apogeu nos anos 30. A sua oralidade é de uma espécie mais rara, embora, como escolha e técnica narrativas termine por responder, certamente, à pungência de significados veiculados por alguns desses contos, uma vez que o narrador cede, nesses casos, o seu lugar a uma voz narrativa entroncada em camadas sociais herdeiras da tradição oral. Ou, melhor dizendo: as vozes narrativas desses contos são, quase em sua totalidade, vozes de personagens que são restos (no sentido literal e no figurado) da experiência rural, estilhaçados pela forçada adaptação ao niverso, também ele, estilhaçado e violento da existência urbana.
Neste sentido, pode-se dizer que a violência de significado dos contos (e que se traduz no título da coletânea, e que é um dos contos, em que angu é tanto uma comida misturada pela farinha quanto um estado de confusão) tem uma duplicidade de origem que só faz intensificar os seus valores: é, por um lado, a violência da existência urbana em que se agitam as personagens e, por outro, a violência de adaptação a que são forçadas essas mesmas personagens, numa mistura de psicologia e sociedade em que a farinha não é mais a de mandioca ou de milho da tradição rural mas a do sangue que espirra das inadequações urbanas. E como não existe distanciamento na mistura, a voz que narra é a mesma que experimenta, e sofre, o narrado e, por isso, a escrita da oralidade parece ser adequada para o registro da liga que resultou da experiência.
Assim, por exemplo, aquela voz feminina que está no primeiro texto do livro, o admirável “Muribeca”, pode transformar o livro em luxo (e lembro aqui o notável poema visual, mas não só, de Augusto de Campos, escrito do ângulo da experiência citadina em que a tipologia adotada para grafar as duas palavras realiza a identificação irônica entre elas) porque os restos da sociedade de consumo e abundância são lidos pela carência de uma atividade – a de catadora de lixo – que faz de sua voz o porta-voz de um segmento social condenado àqueles restos. Duas vezes restos: de uma herança cultural despedaçada pela inadequação à existência urbana e, como decorrência, de uma sociedade de abundância e desigual que só faz aumentar o sentido de necessidade e de carência. mas o grande feito de Marcelino Freire, no entanto, é através da fala da personagem, construir, pelo avesso, dando-lhe um sinal positivo, a alegria possível da carência.
https://www.youtube.com/watch?v=c4rsKoEvlQo
MARCELINO FREIRE é escritor. Nasceu em 1967, em Sertânia, PE. Viveu no Recife e, desde 1991, reside em São Paulo. É autor, entre outros, dos livros “Angu de Sangue” (Ateliê Editorial) e “Contos Negreiros” (Editora Record – Prêmio Jabuti 2006). Em 2004, idealizou e organizou a antologia de microcontos “Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século” (Ateliê). Alguns de seus contos foram adaptados para teatro. Participou de várias antologias no Brasil e no exterior. “Contos Negreiros” foi publicado em 2013 na Argentina, pela Editora Santiago Arcos e com tradução de Lucía Tennina, e no México, pela Librosampleados, com tradução de Armando Escobar. Criou a Balada Literária, evento que, desde 2006, reúne escritores, nacionais e internacionais, pelo bairro paulistano da Vila Madalena. É um dos integrantes do coletivo EDITH, pelo qual lançou, em julho de 2011, o livro de contos “Amar É Crime”. No final de 2013, publicou seu primeiro romance, intitulado “Nossos Ossos” (Record), publicado também na Argentina, pela editora Adriana Hidalgo, e na França, pela editora Anacaona, e com o qual ganhou o prêmio Machado de Assis 2014 de Melhor Romance pela Biblioteca Nacional. Coordena oficinas de criação literária desde o ano de 2003.
Assista a Entrevista de Marcelino Freire no Programa Provocações.
https://www.youtube.com/watch?v=2Yxn0WcrkGM
Antônio Abujamra entrevista o escritor Marcelino Freire. Ele nasceu em 20 de março de 1967 na cidade de Sertânia, em Pernambuco. Se formou em Letras e aos 23 anos se mudou para São Paulo. Trabalhou em agências publicitárias, mas sempre se limitando ao cargo de revisor de texto. “Eu não queria ficar com o meu juízo criativo tomado pela propaganda”. Vencedor do Prêmio Jabuti, em 2006, por seu livro Contos Negreiros, Marcelino Freire conta que decidiu escrever por não ser bonito. “Escrevo porque foi a única maneira que encontrei de alguma forma me vingar”. E acrescenta: “Acho muito corajoso aqueles caras que colocam querosene no corpo, riscam um fósforo e saem correndo pelas ruas. Às vezes me dá vontade de fazer isso, mas como sou um bundão e muito covarde eu prefiro escrever”. Como agitador cultural, Marcelino Freire organiza periodicamente um evento literário na Vila Madalena, reunindo bares, centros culturais e livrarias. A Balada Literária, como é conhecida, já conseguiu atrair nomes como Lygia Fagundes Telles e João Ubaldo Ribeiro. Considerado um dos maiores escritores dos últimos anos, o autor pernambucano diz ainda não se considerar parte da literatura brasileira. “Estou chegando lá ainda. Sou teimoso, persistente… Estou teimando no meu ofício”. Quando questionado se deseja chegar à Academia Brasileira de Letras, ele declara: “Não sou atraído nem pela academia de fazer ginástica”.