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Dossiê Missões: O Temporal – Jean Baptista

Dos atos de guardar
Leticia Bauer

GUARDAR
Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.
Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.
Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por
ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,
isto é, estar por ela ou ser por ela.
Por isso melhor se guarda o voo de um pássaro
Do que um pássaro sem voos.
Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar.
Antonio Cicero

 

94(816.5) / B222d – 04 Exemplares: 04

Relendo esse poema de Antonio Cicero penso, inevitavelmente, sobre os museus. Penso em como, e por que meios, podemos guardar seus acervos nesse sentido poético e que me parece tão próprio às ações ligadas à prática museológica. Fico pensando, também, no equilíbrio tão necessário entre os rigores das ações técnicas que envolvem a preservação dos acervos e a movimentação de sentidos sugerida pelos atos de olhar, fitar, admirar, iluminar e ser iluminado por algo. Nos museus, na grande maioria das vezes, entramos em contato com rastros do passado. Vestígios que são constantemente inquiridos por espectadores do presente que se voltam para o tempo que já passou. Afiguram-nos partes, traços, vestígios recolhidos e concentrados num lugar que encerra, por pressuposto, a função de guardar. Ao apresentar este dossiê, o primeiro de uma série, acredito ser relevante mencionar e situar, basicamente, dois aspectos. O primeiro refere-se ao contexto de produção da pesquisa que resultou nas três publicações sobre a experiência missional que ora se tornam conhecidas do público. Estes estudos vinculam-se a uma proposta de requalificação da exposição de longa duração do Museu das Missões iniciada em 2004. Cada uma das dimensões exploradas no trabalho iluminou a produção de conhecimento que deve,  necessariamente, acompanhar o trabalho de preservação de um acervo museológico. É somente por meio da pesquisa permanente que fazemos valer o ato de preservar um acervo para o conhecimento do público. O segundo aspecto relevante refere-se ao processo de pesquisa. Ao mesmo tempo em que temos o comprometimento com o estudo constante dos vestígios materiais da experiência missional como suporte de informação singular, é necessária a busca constante de informações sobre o mundo que, hoje, falta ao redor do vestígio. Um trabalho de pensamento que acompanha a interpretação de um resto, uma ruína, uma peça de museu e a torna um rastro do passado.

É neste sentido que os dossiês históricos se projetam como articuladores de relações entre vestígios materiais e informações do tempo em que tais fragmentos foram operados em seus usos originais. O trabalho realizado por Jean Baptista tem o comprometimento com o registro documental e seu confronto com diferentes referências. Com o mesmo rigor, o autor investiga documentos do século XVII, XVIII e XIX e dialoga com referências etnológicas e historiográficas que se instauram como interlocutores permanentes para a formulação de novas interpretações sobre a experiência missional em terras sul-americanas. Neste primeiro dossiê a perspectiva concentra-se nos aspectos temporais da vida no espaço missional. Por meio dele, tomamos contato com a diversidade e complexidade existente nos povoados. Uma pluralidade de práticas que relativiza e particulariza ainda mais essa experiência histórica. A proposta, desde seu início, nunca foi a de reeditar sequências cronológicas ou temas já conhecidos e popularizados no estudo sobre as missões. Nunca foi, tampouco, a de suprir todas as lacunas e questões. O que se teve como pressuposto foi a tentativa de trazer novas questões e novas reflexões sobre a história missional sob enfoques específicos. A narrativa organizada pelo autor nos aproxima do passado sem a ilusão do testemunho e da totalidade, nos sugerindo relações a partir de um trânsito entre referências tão diversas quanto a experiência missioneira.
O que pessoalmente desejo é que este trabalho chegue ao público como mais uma alternativa para o ato de guardar. “Em cofre não se guarda coisa alguma”. “Em cofre perde-se a coisa à vista”. Ao publicar estes trabalhos o Museu das Missões faz valer sua vocação. Que os documentos, narrativas, imagens, registros e personagens que figuram nas páginas a seguir ressignifiquem, uma vez mais, o ato de guardar o passado.

  • Leia o livro em PDF aqui.

Jean Baptista

Jean Baptista nasceu em Porto Alegre, Em 1976, e iniciou seus estudos de História em 1997. Desde então, dedica-se à investigação dos Manuscritos da Coleção de Angelis, um dos principais acervos de documentos gerados durante a experiência das missões.

Enquanto se doutorava no curso de pós graduação em História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS-2004-2007), sob a orientação de Maria Cristina Razzera dos Santos, participou de pesquisas financiadas pena Capes e CNPq, tais como o projeto Xamanismo e Cura na Coleção De Angelis e Lideranças Indígenas.

O autor integrou ainda o projeto de Requalificação do Museu das Missões, quando, em 2006, elaborou a primeira versão dos dossiês que compõem esta coleção.

Sua atividade docente inclui o ensino da disciplina América nos cursos de graduação em História da Universidade de Caxias do Sul (UCS) e da Universidade Federal de Rio Grande (Furg). Atualmente, leciona as disciplinas de América Latina e América do Norte no curso de Relações Internacionais da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) de Porto Alegre.

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