Moacyr Scliar é autor de mais de 50 livros publicados em diversos países, com grande repercussão critica, e ganhador de vários prêmios, tendo obras adaptadas para o cinema, rádio, TV e teatro. Foi colunista no jornal Folha de S.Paulo, onde publicava contos fictícios baseados em noticias reais.
Desse trabalho surgiu o livro “O imaginário cotidiano” uma compilação com todas essas histórias, onde alem da enorme criatividade do autor, os textos contam também com muito humor e mensagens subliminares que levam o leitor a refletir sobre o tema abordado. À primeira vista os textos parecem bobos, se você ler sem prestar atenção, quando na verdade são refletivos, inteligentes e todos passam alguma mensagem, geralmente escondida por trás de um texto aparentemente bobo. É essa mescla de simplicidade e ao mesmo tempo criatividade e inteligência que faz o livro tão bom.
Leia uma das cronicas de Moacyr Scliar que contém no livro abaixo.
“Homem de 24 anos joga sua avó do 21º andar.”
Folha Online, 20 fev. 2001
Que olhos grandes você tem, meu neto!
– São para te olhar, vovó. O olhar de um neto sobre sua avó é sempre significativo. No rosto enrugado ele lê a história de sua família, ele lê a sua própria história. Ele compreende que foi precedido, neste mundo, por gente que lutou e sofreu para que ele pudesse viver. Gente que o alimentou, que o embalou para dormir, gente que cuidou dele quando estava enfermo. E também gente que o maltratou, não é, vovó? Enfim: o rosto de todas estas pessoas se condensa, por assim dizer, na face da vovó, a face que o neto contempla com ambivalente melancolia.
– Hum. Não sei se compreendi, mas você fala bonito, é bom de escutar. A propósito, meu neto, que orelhas grandes você tem.
– São para te ouvir, vovó. Para um neto, as palavras de sua avó são música, às vezes dissonante, a celebrar os mistérios da existência. Ouvindo sua vovó o neto aprende a viver. É claro que vovós em geral são velhinhas e frequentemente falam baixinho; de modo que as orelhas crescem, se expandem para capturar todos os sons mesmo os mais débeis.
– Hum. E que nariz grande você tem, meu neto!
– É para te cheirar, vovó. O teu odor me leva de volta à infância; quando entravas em meu quarto era a primeira coisa que eu sentia, esse teu tão característico cheiro. Até hoje me causa engulhos, você sabe? Até hoje. O tempo passou, e muitos outros odores entraram em minhas narinas, inclusive o perfume de belas mulheres, mas o seu cheiro está sempre em minha memória. Que coisa, não é?
– É… A propósito, que mãos grandes você tem, meu netinho!
– São para te agarrar, vovó. Como você me agarrava quando era pequeno, em geral para me surrar. Você me deu surras homéricas, vovó. Talvez eu as tenha merecido, não sei. O fato é que o ressentimento ficou dentro de mim, um ressentimento que jamais consegui vencer. Cresci olhando minhas mãos, ansiando que elas ficassem fortes o suficiente para mostrar a todos – principalmente a você – que já não sou um garotinho indefeso. Minhas mãos hoje são instrumento de vingança, querida vovó.
– É mesmo? Escute, meu neto, não estou gostando desta conversa. Vamos mudar de assunto? Vamos falar deste quarto. Que janela grande tem este quarto, meu netinho! Por que uma janela tão grande?
– Você já vai ver, vovó.
(Um grito de anciã. Depois, um baque surdo. E o silêncio, mais ensurdecedor que uma batucada de carnaval.)
(Moacyr Scliar)