Agrupados neste volume por um critério de afinidade temática, os contos de Moacyr Scliar revelam a força da sua ficção. As relações entre pais e filhos expostas de forma insólita, a Bíblia revisitada sob uma ótica surpreendente, os jogos do poder e da paixão encarados por ângulos inusitados, tudo isso dentro de um clima de humor e fantasia – eis o poderoso universo ficcional de Moacyr Scliar.
Estamos diante de um mestre. Nunca pressentimos como fabrica o elemento insólito que salta do subsolo do texto e nos envolve numa visão transfiguradora da realidade. Poucas vezes, na literatura brasileira contemporânea, um escritor promoveu um entrelaçamento tão perfeito entre os grandes mitos da cultura e as técnicas narrativas, entre força poética e timbre reflexivo, entre fabulação irônica e anedota judaica.
O leitor compreenderá por que tantas dessas histórias, traduzidas para onze idiomas, foram várias vezes premiadas, inclusive no exterior.
Leia um de seus contos desta sua obra:
O Desamparo dos Órfãos
Havia um órfão em minha rua e nessa rua, de resto agradável, não crescia nada, planta alguma. É por causa dele, dizia minha mãe, é a melancolia dele que mata minhas begônias. E até podia ser verdade: espantosa era a tristeza do órfão, coisa nunca vista. Cada vez que surgia à porta de sua humilde casa, cessava o canto dos pássaros, o sol se soldava e um vento frio soprava.
Essa dor, a dor da orfandade, ele não a ocultava de ninguém. Pelo contrário, contava a quem quisesse ouvir a sua triste história: de como, aos dois anos, perdera em rápida sucessão pai e mãe, pai de acidente, mãe de obscura doença, talvez agravada por desgosto; de como fora recolhido por uns tios que só pensavam em maltratá-lo; de como chorava todas as noites, e assim por diante. Condoídos, fazíamos o possível para consolá-lo. Era convidado para batizados e casamentos (mas não ia), para jantares de confraternização (também não ia). Levávamos a ele balas e chocolate (que não comia) e presentes diversos (que não abria). E assim iam se enchendo de culpa os nossos corações, e nem mesmo a ocasional revolta de um ao outro – mas que diabo, não é culpa nossa se é órfão! – nos aliviava; ao contrário, só fazia aumentar o remorso coletivo.
Finalmente, uma ideia nos ocorreu: fazer uma festa em seu aniversário. Uma festa bonita, bem alegre, todo mundo cantando o parabéns a você – aquilo talvez rompesse a tristeza que o envolvia como um espessa couraça.
Não seria um empreendimento fácil. Em primeiro lugar, nem sabíamos o dia de seu nascimento; era uma coisa da qual não falava a ninguém, por razões óbvias. Mas meu pai tinha um amigo que trabalhava no cartório e graças a ele conseguimos a informação. Aliás, bem a tempo: o aniversário ocorreria dali a uns poucos dias.
O segundo problema era a sua resistência a qualquer tipo de celebração. Ele não permitia de jeito nenhum que festejássemos o aniversário. Teríamos de organizar a festa na casa de alguém – e a minha, grande, foi logo escolhida – e atraí-lo a qualquer pretexto.
Bem, fizemos o que tinha que ser feito, compramos a torta e refrigerantes, decoramos a sala de entrada da casa. No dia, dois de nosso grupo foram à casa dele. Disseram que eu estava doente, muito mal, e queria vê-lo. De nada desconfiou, mesmo porque gostava de mim; apesar de triste, gostava de mim. Trouxeram-no, pois, abriram a porta e o fizeram entrar.
Ah, mas foi uma má ideia, aquela. Porque, tão logo viu a sala enfeitada, e a mesa posta, e a torta com as velinhas, deu um grito e caiu, desmaiado. Nós ainda levamos para o hospital mas foi inútil, morreu no dia seguinte: derrame é coisa séria. Sobretudo aos oitenta e nove anos (o trabalho que deu para colocar tanta vela naquela torta).
Nunca mais fizemos festa alguma em nossa rua. Tais são as consequências do desamparo dos órfãos.
(Moacyr Scliar)